Dawson Isla 10: engajamento sob as rédeas do lirismo

O que esperar se você é um dos ministros de um país que sofre golpe de estado, tem seu presidente assassinado e acaba indo parar no degredo de uma ilha gelada? Sergio Bitar, integrante da equipe ministerial de Salvador Allende, foi um dos que suportaram e (sobre)viveram para contar essa história real do povo chileno, agora levada às telas com paixão e algo de thriller pelo cineasta Miguel Littín no longa-metragem Dawson Isla 10.

Dawson é uma ilha ao sul do Chile, próxima ao Estreito de Magalhães, para onde foi levado todo o primeiro escalão do governo deposto, em 1973, após o golpe liderado pelo General Pinochet. Ali, o nazista Walter Rauff, refugiado no Chile à época, concebera o campo de concentração mais meridional do planeta. Ao chegarem ao local, nos conta a película, os homens de estado são informados de sua nova condição: não são mais civis, passam a ser “confinados”, “prisioneiros”, “nada”. Perdem seus nomes de batismo e tornam-se apenas “ilhas”. Bitar é o Isla 10 do título.



O terror se instala, sobretudo personificado no Tenente Figueroa, equação ímpar de personagem bem talhado, desde a caracterização e sinopse à interpretação propriamente, com direito a uma razoável reviravolta na figura do algoz militar a partir da segunda metade da narrativa. A porrada desce solta e o esquema de privação geral, trabalho forçado e interrogatórios acachapantes ameaça minguar os
prisioneiros, tidos pelos agentes da opressão como comunistas “de merda”.

Há doenças, morte, tentativas de fuga e os que enlouquecem naquele horizonte de possibilidade zero. Mas Littín monta um afresco, ainda que bastante sóbrio, de exaltação à tropa de esquerda e sua moral, com espaço à vontade para revelar as estratégias de sobrevivência, os pequenos truques, a generosidade mútua, as pequenas alegrias e mesmo a tristeza, como na bela cena em que se noticia no barracão a morte
do poeta Pablo Neruda.

Melhor que essa apenas uma: o personagem do ator baiano Bertrand Duarte (o ministro Miguel Lawner) a dividir um lanche nos degraus de uma capela recém construída. A participação da Bahia na produção, candidata do Chile à indicação de melhor filme estrangeiro no Oscar 2010, criou expectativa no meio cinematográfico soteropolitano e garante um gostinho a mais para o público local. Além de Bertrand,
está também no elenco Caco Monteiro. Marcado por personagens cômicos no cinema e no teatro, o ator encarna, e bem, apesar da exígua presença em cena, mais um personagem dramático de sua galeria recente (Tudo Isso Me Parece Um Sonho, Anjos do Sol).

Outros baianos que pontificam nos créditos: Diana Gurgel, Tenille Bezerra (produção), Nicolas Hallet e Simone Dourado (som), além de Waltinho Lima, responsável pela ancoragem brasileira de Dawson Isla 10 por meio de sua produtora, a VPC. O governo venezuelano de Hugo Chávez também prestou apoio à produção. Destaca-se ainda nos créditos, entre os agradecimentos, o nome do cineasta chileno Andrés Wood. Nascido em 1965, ano em que Littín lança seu primeiro curta (La Tierra Ajena), Wood assina o filme de maior sucesso, dentro e fora do país, dos últimos 20 anos, Machuca, que aborda o regime de exceção pós-Allende sob a ótica infantil.

Alguns atores e técnicos, como o diretor de fotografia Miguel Ioann Littín, filho do diretor, atuam nos dois filmes. Pelas imagens de Machuca, inclusive, Ioann foi premiado no Festival de Havana em 2005. Na parceria com o pai, ele volta a brilhar.

Mais que essas recorrências, porém, a aproximar os dois filmes está a visão de cinema que transcende o aspecto geracional. O exercício da memória, que a arte proporciona, deve funcionar como terapia de sublimação ou resistência? Consciência social ou apenas conhecimento histórico? Littín e Wood nos dizem, com seus filmes, que, muito além dos panfletos, o cinema deve contar histórias e emocionar. Ainda
que setores da crítica chilena vejam em Dawson uma concessão desmedida às convenções do cinema de gênero frente ao passado de engajamento e militância de seu autor.

Por Marcos Pierry

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