As irmãs Sarah e Emily Kunstler são duas novaiorquinas de trinta e poucos anos e assinam o documental Perturbando o Universo (2009) em regime de co-direção. Elas passaram a infância e a adolescência aterrorizadas pelo efeito colateral da militância do pai, o advogado e ativista William Kunstler, em suas vidas.
No filme, com o qual parecem querer entender quem foi Kunstler, não são poucas as afirmações sobre a negligência e a insensibilidade da figura paterna. Mas o que acaba sobressaindo, e com pontos positivos para a dupla, é o olhar de admiração que lançam para o homem comprometido com os direitos civis de negros e outros segmentos de convívio acirrado nos Estados Unidos.
William Kunstler tornou-se uma lenda na mídia e na sociedade norte-americana ao assumir a defesa dos líderes de uma onda de protestos, em favor da igualdade racial, que varreu Chicago no fim dos anos 60. O caso emblemático da coragem e da presença de espírito do advogado deu-se em pleno tribunal, quando o juiz ordenou que o líder negro Bobby Seale, ali na condição de réu, fosse amarrado e amordaçado após recusar calar-se e sentar-se. Os guardas cumpriram a determinação do magistrado e Kunstler reagiu manifestando vergonha de ser um advogado dos EUA naquele momento e desafiando o juiz a submetê-lo a mesma punição cruelmente imposta a Seale.
A partir daí, sua presença passou a ser recorrente em atos pela emancipação da população afro-americana. Com seus discursos afiados, defendia publicamente as estratégias de resistência ao preconceito do própria estrutura estatal, que julgava legalista, burguesa e discriminatória: dominar o teatro judicial em torno da ação de policiais, juízes e qualquer representante do poder branco, criando uma jurisprudência que aos poucos derrotaria, nos termos da lei, qualquer forma de opressão.
Foi com esse pensamento que ele passou a encarar (leia-se, defender o elo mais fraco de) casos cada vez mais espinhosos: a questão indígena nos estados de Dakota de Norte e do Sul; o árabe El Sayed Nosair, acusado de assassinar o rabino Meir Kahane (sendo Kunstler judeu!); um grupo de adolescentes negros que teriam cometido estupro seguido de assassinato no Central Park; Gregory Joey Johnson, que atiçou fogo à bandeira norte-americana na convenção nacional dos republicanos, em Dallas, Texas, 1984, com direito à presença de Ronald Reagan. E ainda o massacre da Prisão Estadual de Attica, em Nova Iorque, em que 32 detentos foram assassinados após uma rebelião; Larry Davis, negro que disparou e matou seis policiais; e muitos outros.
Com todo o seu prestígio e tarimba, Kunstler chegou a ir ao tribunal como advogado de defesa de um animal, um gato doméstico Tyrone. O documentário mostra que esse e outros expedientes polêmicos, a exemplo da defesa de Nosair e Davis, fizeram com que colegas de profissão e a opinião pública desconfiasse da pureza e retidão dos ideais de justiça de Kunstler, passando a considerá-lo muitas vezes um excêntrico, mais interessado em perpetuar a celebridade adquirida com a repercussão dos distúrbios em Chicago.
Mas o painel criado por Sarah e Emily deixa frestas para revelar o bom humor e descontração do herói, tornando-o mais humano e carismático perante nossos olhos. Ele costumava oferecer café e donuts para manifestantes que iam à sua porta protestar contra seus clientes ou o que supostamente eles representavam. Ex-major durante a 2ª Guerra Mundial, Kunstler se ligou ao ideário flower power e incorporou o visual e o comportamento hippie naqueles tempos bicudos de Vietnã.
A linguagem do filme é a da transparência narrativa, e, com um personagem tão rico, de quem, acima tudo, conseguiram preservar o interesse, as diretoras não precisariam de mais para segurar a atenção do público. Logram, assim, sem forçar a barra, o acerto de contas familiar e o resgate digno da figura de Kunstler, que, se não perturbou o universo, parece ter chacoalhado os EUA, para melhor, dos anos 60 aos 90.
Marcos Pierry
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